Bom Dia!
Mais um dia nasce no
Brasil aquecido pelo sol ou refrigerado pela chuva.
O cantar do galo
distante é trazido pelo vento e musicaliza uma outra fração da periferia que se
espreguiça.
Se é primavera,
outono, inverno ou verão, não importa.
Com o mesmo vigor de
sempre, levantam-se Lula,
Severino, Maria, João...
Quem não faz corpo
mole pro trabalho, chama-se guerreiro da nação.
Emaranhado de casas,
cruzamento de becos, burburinho de vozes, chalopinha no fio de alta tensão,
latido de cães, cano d’água estourado, paredes sem reboco, depósito de ferro
velho, sirene nervosa de polícia... Tudo isso é uma foto três por quatro do
subúrbio.
E o personagem que é
compactado nos cm² da fotografia, nos obriga indireta e subjetivamente a
refletir sobre o tempo, sobre... um tempo... onde houve mais arco-íris, mais
flores pelos quintais e menos cimento.
O que mostrar de
exótico em um mundo tão desenvolvido tecnológica e ciberneticamente?
Se andarmos por um
beco nos confins do Alto José Bonifácio encontraremos a resposta viva, experiente
e madura como sapoti. Perceberemos que o que era comum, hoje já não o é mais.
Parece que nos incomoda...
A estética de hoje e
a fragilidade roubaram a cena. Roubaram nosso tino de apreciar o que vem da
madeira. É a vida mais acelerada... mais veloz do que cavalo doido que apanha.
Será isso mesmo?
Pernambuco é celeiro
de vários mestres que trabalhavam e trabalham com as mãos. Patativa do Assaré
na poesia, Mestre Vitalino no barro, Ana nas carrancas, seu Lula na tornearia...
grandes intelectuais! O nativo de ontem é o exótico de hoje.
José Belarmino da
Silva é o nosso Lula do Pilão.
Nasceu em Gravatá de
Bezerros-PE, no ano de 1951. Morador desta comunidade há mais de cinquenta anos,
ele nos conta um pouco de sua vida. Bem vivida, bem pensada.
Quando menino brincou
bastante entre seus seis e oito anos de idade. Filho de pai torneiro, herdou a
profissão deste por também ser treloso. E o vírus dessa arte corria na corrente
sanguínea de tios, tias e irmãos do velho Lula.
O pai de seu José
morreu quando foi cortar uma árvore na mata. A mesma caiu por cima dele e o
matou. Ambos, pai e filho, fabricavam as próprias máquinas com as quais trabalhavam. Seu José
continua fabricando seus próprios maquinários.
Se foi o tempo! O
tempo agora é outro... transformar. Verbo conjugado em todos os tempos. Por
isso, caro leitor (a), seu Lula é tradicional. Respeita o moço!
Houve uma época em
que se pensava que trabalho era coisa de gente pobre, de escravo... Seu
Belarmino acorda cedo todos os dias para trabalhar na tornearia que tem atrás
de sua casa. Desafia sem querer o tempo de lan houses, câmeras speed domes e
telas digitais. O que faz? Pilão, ioiô, fruteira, porta joia, jarro, porta
lápis, bomboniere, quebra-nozes, licoleira... Só por encomenda. É o pé de
jenipapo ganhando formas, servindo para outras utilidades. E, por falar em
licoleira, ele tem motivos de sobra para tomar um cálice de licor ou vinho. Ou
não tem?
O Homem que ainda
trabalha com madeira e ferro, não se tornou pré-histórico como muitos Homens de
então.
Nenhum dos seus nove
filhos quiseram seguir sua profissão. Por isso, fica triste de vez enquanto. E
deixa um recado aos jovens. “Aprendam alguma coisa.”
Em si tratando de
escola, aprendeu a cartilha do “abc e o ípsilon (y).
Não gosta de ir à praia.
Porém, tem saudade do rio, do açude... como também da professorinha e do carro
de lata que fabricava.
Fica super contente
quando vê ainda uma criança brincando com um pião seu. Eita, quebra de
paradigma! Muitos Homens do Bonifácio, quando moleques, brincavam com o
balãozinho de madeira e ponta de prego. Lembra dos filhos de Manézinho e quase
chora...
Cuscuz com cambimba
na vida de um sujeito simples e rural é energético. “Porra, meu irmão, é melhor
do que carne verde”, diz o nosso ancião.
Aos treze anos
conhece a sanfona de vinte e quatro baixos e compôs um bolero. Talvez já
sonhava com um grande amor! Casado com a música e com uma grande mulher há
muitos anos, também sabe o que é a felicidade.
Músico só aos
domingos do Mercado de Nova Descoberta, outra periferia do Recife, as cinco da manhã
aquece o fole, fuma um cigarro, sonha com dias melhores.
Nem só de pão vive o
Homem. Durante vinte e cinco anos fazia e vendia pão no Alto José Bonifácio. O
melhor pão, sem hipocrisia. Pois era feito com carinho, gosto e garra. Com o
fermento do sentimento de amor ao próximo. Todavia, a tornearia venceu o trigo.
Ele diz que, hoje, o ser humano estar mexido na sua configuração espiritual.
Muita malícia!
O Homem que tem um
olho cego por causa da limalha, tem ainda o privilégio de ver a luz e tem luz
em si mesmo. Sabe exatamente o significado do nascer do dia. Sendo assim,
situa-se no mundo como um ser singular e plural. Tem consciência de muita
coisa, até da solidariedade que na atualidade anda empobrecida.
Do passado distante
tem saudade. Ordem de pai e mãe era dada uma vez só. Uma vez só!
Ah, se o passado voltasse!
voltaria a brincar pelos quintais... E nós brincaríamos com ele, sim, senhor.
Com vossa licença, poderíamos, seu José?
Belarmino é um ser do
mundo que mora no alto de periferia. Que é forte e corajoso. Que abomina a
ditadura da beleza artificial em todos os sentidos. Que gosta de viver. E, por
gostar de viver, supera dificuldades de uma vida pobre em um casebre tímido.
João Cabral de Melo
Neto mostrou ao Brasil a senha da felicidade. “Morte e vida Severina” não é só
pobreza extrema. Morte e Vida Severina na cidade acontece, também.
A tarde já se foi... consumida por essa longa história... A vela já queima no castiçal de madeira do seu Lula. É noite... Encoste a porta, rode a chave, ponha a taramela. E, quando findar a luz, o escuro segue só. É hora do boa noite. E, quando o dia chegar, é hora do bom dia mais uma vez. Somos ricos... Acorda, Brasil!
Expediente.
Texto - André Santana
Fotografia e Arte - Jesuel Santana
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