Quarta- feira de carnaval quase tudo é cinzas... Oito e meia
da noite. A Av. Norte parece deserta. As luzes alumiam por força do à pulso. O
tempo tem cara de velório. O vento sopra mais forte e frio... É velório,
realmente. E só quem aparece é quem possui coragem e muita flexibilidade no
corpo. É necessário gingado e descontração.
O cemitério do Bairro de Casa amarela é nosso ponto final.
Lá, o vigilante encontra-se muito apreensivo. Procura uma maneira de conter uma
multidão nervosa que se aproxima a cada passo de frevo. E descobre que a única
solução é segurar o portão com os dedos, pois o cadeado é velho e, assim como a
corrente, sente o mastigar lento da ferrugem. E a noite cai... cai... cai...
cada vez mais.
Leitor, você estar perdido? Então continue lendo. Porque é
cinza, canto, enterro. É Gil Gomes. Aqui... Agora!
Ele saiu da casa da patroa e foi caminhando, caminhando...
Passou por uma casa funerária e se apaixonou por um caixão. Por um caixão...
Que não era um caixão qualquer. Caixão multicor. Foi amor à primeira vista.
Sentiu a espuma do leito que desce à tumba e esqueceu da vida quase que totalmente.
Trabalhava de sol à sol, de domingo à domingo, mas não esqueceu da cerveja devassa
que devassou tudo em sua vida! Até o chifre que o próprio levou. E ele foi!
Foi! Foi! Foi pensar na vida na horizontal. E pediu música! Música! Muita
música! Com direito a trios e frevioca. E o cortejo começa a andar às 21hs e 27
minutos. Momento exato em que a caixa colorida deu a partida assim que estouraram
o primeiro rojão. Parece um carro de fórmula 1 tentando a Pole Position. Venceu
as carrocinhas de cerveja logo de imediato. E uma placa de trânsito indica
Guabiraba, mas ele não vai pra lá.
Essa apoteose fúnebre não acontece no Farol da Barra, é
claro. Acontece na Av. Norte Miguel Arraes de Alencar, em Recife, numa noite
fosca e opaca. Desde 1997 esse “enterra não enterra” está para acontecer. Ah! A
mãe de Núbia está presente, também, nessa kilometragem toda! Apoio sandálias
acauã. Mais conforto para os seus pés!
Passados os primeiros dez minutos, encheram o caixão de
folha de canela, meu velho. Formigas humanas agitadas arrudeiam o bichinho.
Papam o defunto exaustivamente. Que falta de respeito! E, para dá o último
adeus ao nosso amigo incógnito, estão presentes na bacia do Vasco da Gama,
vamos lá: A enfermeira do Hospital da Restauração, o advogado dos cornos sem
OAB, John Lennon e os bonecos gigantes. Os semáforos estão doidos com tanto barulho.
E placas indicam a todo o momento que não podemos estacionar. “Já visse isso”?
São cinco trios e um mundo que descamba com o som, com tanta
tristeza alegre.
Venda de cerveja, água mineral, espetinho e pipoca que pula
junto com o povo são outros atrativos dessa festa legitimamente suburbana.
Nesse tipo de baile o “bicho pega”! É réveillon carnavalesco
com aparência de assombração! Se não aguentar, pede pra sair, aspira!
Enquanto a sombrinha mais colorida do mundo gira, o falecido
em seu conforto fala em alta voz: Voltei, Recife! Foi a saudade que me trouxe
pelo braço!
O diferencial disso tudo é que não há choro e nem chorinho.
Não dorme, neném, que a folia pega!
Rua Padre Lemos. Última pista de dança. O ponto de fuga
indica chegada, mas não o fim da brincadeira. Do alto da frevioca é anunciado:
Estamos chegando! Estamos chegando à “cidade dos pés juntos”! Salve, salve o locutor
de rodeios! Nesse momento “toca-se parabéns pra você.” O difícil é saber se
estamos ouvindo frevo ou marcha rancho, tais entendendo? E a voz retumbante do
locutor: Chegaaaamos!
Momento de furor! O caixão barrua no portão do cemiterial,
assim como um navio em um iceberg. O morto é proibido de entrar em sua morada
por estar sem camisa. Eita, placa maldita! A única solução é enguiçar. Mas o defunto está muito cansado e resolve voltar pra
sua primeira casa ao som do frevo. Dá pra tu, ou quer mais?
Agora falando sério: Que significa brincar com a morte? Por
que temê-la tanto? Vale a pena questioná-la?
Esperamos que você tenha curtido a festa. Que não esquente
mais a cabeça com besteira. Desejo por encontrar o nosso morto-vivo ou nosso
vivo-morto coberto de cinzas e de folhas no próximo carnaval. E que, para sua
satisfação, essa estória sempre recomeça.
Um abraço a todos!
Expediente.
Fotografia e Arte - Jesuel Santana
Texto - André Santana
Expediente.
Fotografia e Arte - Jesuel Santana
Texto - André Santana
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