segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Lula do Pilão - Lula Pestle

lula do pilão

Bom Dia!
Mais um dia nasce no Brasil aquecido pelo sol ou refrigerado pela chuva.
O cantar do galo distante é trazido pelo vento e musicaliza uma outra fração da periferia que se espreguiça.

Se é primavera, outono, inverno ou verão, não importa.
Com o mesmo vigor de sempre, levantam-se Lula, Severino, Maria, João...
Quem não faz corpo mole pro trabalho, chama-se guerreiro da nação.

alto josé bonifácio
Emaranhado de casas, cruzamento de becos, burburinho de vozes, chalopinha no fio de alta tensão, latido de cães, cano d’água estourado, paredes sem reboco, depósito de ferro velho, sirene nervosa de polícia... Tudo isso é uma foto três por quatro do subúrbio.

E o personagem que é compactado nos cm² da fotografia, nos obriga indireta e subjetivamente a refletir sobre o tempo, sobre... um tempo... onde houve mais arco-íris, mais flores pelos quintais e menos cimento.

O que mostrar de exótico em um mundo tão desenvolvido tecnológica e ciberneticamente?

Se andarmos por um beco nos confins do Alto José Bonifácio encontraremos a resposta viva, experiente e madura como sapoti. Perceberemos que o que era comum, hoje já não o é mais. Parece que nos incomoda...

A estética de hoje e a fragilidade roubaram a cena. Roubaram nosso tino de apreciar o que vem da madeira. É a vida mais acelerada... mais veloz do que cavalo doido que apanha. Será isso mesmo?

Pernambuco é celeiro de vários mestres que trabalhavam e trabalham com as mãos. Patativa do Assaré na poesia, Mestre Vitalino no barro, Ana nas carrancas, seu Lula na tornearia... grandes intelectuais! O nativo de ontem é o exótico de hoje.

lula do pilão
José Belarmino da Silva é o nosso Lula do Pilão.

Nasceu em Gravatá de Bezerros-PE, no ano de 1951. Morador desta comunidade há mais de cinquenta anos, ele nos conta um pouco de sua vida. Bem vivida, bem pensada.

Quando menino brincou bastante entre seus seis e oito anos de idade. Filho de pai torneiro, herdou a profissão deste por também ser treloso. E o vírus dessa arte corria na corrente sanguínea de tios, tias e irmãos do velho Lula.

O pai de seu José morreu quando foi cortar uma árvore na mata. A mesma caiu por cima dele e o matou. Ambos, pai e filho, fabricavam as próprias máquinas com as quais trabalhavam. Seu José continua fabricando seus próprios maquinários.

Se foi o tempo! O tempo agora é outro... transformar. Verbo conjugado em todos os tempos. Por isso, caro leitor (a), seu Lula é tradicional. Respeita o moço!

Houve uma época em que se pensava que trabalho era coisa de gente pobre, de escravo... Seu Belarmino acorda cedo todos os dias para trabalhar na tornearia que tem atrás de sua casa. Desafia sem querer o tempo de lan houses, câmeras speed domes e telas digitais. O que faz? Pilão, ioiô, fruteira, porta joia, jarro, porta lápis, bomboniere, quebra-nozes, licoleira... Só por encomenda. É o pé de jenipapo ganhando formas, servindo para outras utilidades. E, por falar em licoleira, ele tem motivos de sobra para tomar um cálice de licor ou vinho. Ou não tem?

lula do pilãolula do pilão

lula do pilão
Esse gênio da madeira intitula-se como homicida de árvores. O deserto também é sua marca. No entanto, tem consciência de Jesus Cristo.

O Homem que ainda trabalha com madeira e ferro, não se tornou pré-histórico como muitos Homens de então.

Nenhum dos seus nove filhos quiseram seguir sua profissão. Por isso, fica triste de vez enquanto. E deixa um recado aos jovens. “Aprendam alguma coisa.”

Em si tratando de escola, aprendeu a cartilha do “abc e o ípsilon (y).

Não gosta de ir à praia. Porém, tem saudade do rio, do açude... como também da professorinha e do carro de lata que fabricava.

Fica super contente quando vê ainda uma criança brincando com um pião seu. Eita, quebra de paradigma! Muitos Homens do Bonifácio, quando moleques, brincavam com o balãozinho de madeira e ponta de prego. Lembra dos filhos de Manézinho e quase chora...

lula do pilão
lula do pilão

lula do pilão
menino brincado de piãoPelo giro de um pião Belarmino volvem a seu passado. Vê-se nos quintais por onde passou e deu seus pinotes por entre pés de manga e goiaba. Magia infantil. O pião dele gira junto com o giro do mundo água. Onde histórias se fundem e são fundidas com um propósito particular. E o poeta usa e abusa das rimas ou não, meu irmão.

Cuscuz com cambimba na vida de um sujeito simples e rural é energético. “Porra, meu irmão, é melhor do que carne verde”, diz o nosso ancião.

Aos treze anos conhece a sanfona de vinte e quatro baixos e compôs um bolero. Talvez já sonhava com um grande amor! Casado com a música e com uma grande mulher há muitos anos, também sabe o que é a felicidade.

Músico só aos domingos do Mercado de Nova Descoberta, outra periferia do Recife, as cinco da manhã aquece o fole, fuma um cigarro, sonha com dias melhores.

Nem só de pão vive o Homem. Durante vinte e cinco anos fazia e vendia pão no Alto José Bonifácio. O melhor pão, sem hipocrisia. Pois era feito com carinho, gosto e garra. Com o fermento do sentimento de amor ao próximo. Todavia, a tornearia venceu o trigo. Ele diz que, hoje, o ser humano estar mexido na sua configuração espiritual. Muita malícia!

lula do pilão
O Homem que tem um olho cego por causa da limalha, tem ainda o privilégio de ver a luz e tem luz em si mesmo. Sabe exatamente o significado do nascer do dia. Sendo assim, situa-se no mundo como um ser singular e plural. Tem consciência de muita coisa, até da solidariedade que na atualidade anda empobrecida.

Do passado distante tem saudade. Ordem de pai e mãe era dada uma vez só. Uma vez só!

Ah, se o passado voltasse! voltaria a brincar pelos quintais... E nós brincaríamos com ele, sim, senhor. Com vossa licença, poderíamos, seu José?

Belarmino é um ser do mundo que mora no alto de periferia. Que é forte e corajoso. Que abomina a ditadura da beleza artificial em todos os sentidos. Que gosta de viver. E, por gostar de viver, supera dificuldades de uma vida pobre em um casebre tímido.

João Cabral de Melo Neto mostrou ao Brasil a senha da felicidade. “Morte e vida Severina” não é só pobreza extrema. Morte e Vida Severina na cidade acontece, também. 

alto josé bonifácio

lula do pilão

A tarde já se foi... consumida por essa longa história... A vela já queima no castiçal de madeira do seu Lula. É noite... Encoste a porta, rode a chave, ponha a taramela. E, quando findar a luz, o escuro segue só. É hora do boa noite. E, quando o dia chegar, é hora do bom dia mais uma vez. Somos ricos... Acorda, Brasil!

Expediente.
Texto - André Santana
Fotografia e Arte - Jesuel Santana
Local: Alto José Bonifacio, Recife - PE, Brasil

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